Veja um breve resumo da história da Neurocirurgia

Resumo histórico

A história da neurocirurgia é repleta de profissionais astutos que lutaram contra um cenário obscuro e complexo na tentativa de salvar vidas. Por séculos, as doenças neurológicas foram encaradas sobretudo no âmbito da observação, mantendo o princípio do “Primum Non Nocere” (princípio da não-maleficência), sabiamente descrito por Hipócrates (460AC-377AC), considerado o pai da medicina (1). Na Grécia antiga, a Escola Hipocrática foi de elevada importância, uma vez que buscou separar a medicina da superstição e especulação, trazendo uma observação objetiva e de cunho científico para explicação e possível tratamento das doenças. Foi esta escola a primeira a classificar as fraturas cranianas, por tipo e severidade, determinando a necessidade de realizar uma trepanação craniana, no livro De capitis vulneribus (1).

In Hippocratis librum de vulneribus capitis . expositio. In qua nihil desiderari potest, quod ad perfectam, atque integram capitis vulnerum curationem pertinet. Editorial: Venice, Luca Bertello, 1566.

Antes da era hipocrática, antigos filósofos e médicos acreditavam que as funções cerebrais eram executadas através dos ventrículos cerebrais por um “pneuma psique”, uma substância de luz ou espírito que permitia os seres de exprimirem sensações, realizar atividades motoras ou mentais (2). Essa idéia permaneceu até o período Clássico (séculos V e IV AC), quando a teoria das três células foi exposta, entre outros por Galeno de Pergamon (130-200) e então propagada das escolas islâmicas até o oeste europeu. Nesta teoria, cada ventrículo (anterior, médio e posterior) teria uma diferente função (imaginação, cognição e memória, respectivamente) (2).

Pintura de Leonardo da Vinci: representação do sistema ventricular no contexto da doutrina celular, em que as funções cerebrais viriam do sistema ventricular e não do parênquima cerebral. Royal Collection Trust; copyright Her Majesty Queen Elizabeth II, 2015 Hippocratis librum de vulneribus capitis . expositio. In qua nihil desiderari potest, quod ad perfectam, atque integram capitis vulnerum curationem pertinet. Editorial: Venice, Luca Bertello, 1566

Séculos adiante, no período do Renascimento (meados do século XIV e fim do século XVI), diversos avanços na área da medicina foram observados, especialmente pela maior abordagem no âmbito da anatomia. Jacopo Berengario da Carpi (1460-1530), um anatomista e cirurgião italiano, publicou uma monografia dedicada ao traumatismo cerebral: De fractura cranii, após ter realizado uma cirurgia cerebral em Lourenço de Médici, importante diplomata de Florença que buscou manter a paz entre os estados italianos no período do Renascimento (3). Benegario também contribuiu enormemente na idealização de instrumentos cirúrgicos, os quais seguiram por séculos sendo utilizados na prática neurocirúrgica (4).

Tratado de fratura craniana descrito por Jacopo Berengario da Carpi. Berengario da Carpi J. Tractatus de Fractura Calvae Sive Cranei. Bologna, Italy: Hieronymus de Benedictus; 1518
Instrumento neurocirúrgico – trefina – descrita por Jacopo Berengario da Carpi. Muito similares às ainda utilizadas nos dias atuais em determinadas cirurcunstâncias. Berengario da Carpi J. Tractatus de Fractura Calvae Sive Cranei. Bologna, Italy: Hieronymus de Benedictus; 1518

Neste importante período, com as dissecções e experimentações afloradas, a doutrina das três células foi dando lugar às funções do parênquima cerebral, real fonte de sentimentos e ações e abrindo espaço para teorias da localização cerebral. Franz Joseph Gall (1758-1828) propôs que funções cerebrais são representadas por áreas cerebrais específicas das convoluções (5). Johann G. Spurzheim (1778-1832) correlacionou as protuberâncias do osso craniano à determinadas áreas cerebrais (Frenologia) (6). Jean P. Flourens (1794-1867) foi além, e através de estimulação do sistema nervoso, definiu diversas funções, distinguindo nervos periféricos, medula, tronco cerebral, cerebelo e hemisférios cerebrais. Ainda, ele concluiu que os hemisférios são responsáveis pelos sentimentos, compreensão e livre arbítrio (7). Ele descreveu uma acurácia relevante para identificação cirúrgica, dando passagem aos trabalhos de expoentes cirurgiões, como Paul Brocca (1824-1880) e Carl Wernicke (1848-1905) (8,9). Esses estudos permitiram a primeira remoção de tumor cerebral realizada com sucesso através da localização cerebral, por Sir Rickman Godlee (1849-1925) (10). Após três anos, foi a vez da primeira remoção de tumor medular, por Victor Horsley (1857-1916) (11). Horsley não realizou apenas a primeira remoção de tumor medular, ele também foi o primeiro a descrever a ressecção de um tumor hipofisário, em 1889. Para esse feito, ele realizou uma craniotomia temporal (12). Vários cirurgiões seguiram com variações de craniotomias temporais e frontais, para diversos propósitos: alívio de hipertensão intracraniana (Frank Paul, 1893), retirada de projetil de arma de fogo (Fedor Victor Krause, 1900), dentre outros (13,14). Essas experiências contribuíram para a descrição de um dos acessos cirúrgicos mais utilizados atualmente, que permite o acesso à diversas patologias intracranianas, como tumores e aneurismas: a craniotomia frontotemporal, sabiamente propagada por George Heuer (1882-1950), em 1914 (15).

Instrumento neurocirúrgico – trefina – descrita por Jacopo Berengario da Carpi. Muito similares às ainda utilizadas nos dias atuais em determinadas cirurcunstâncias. Berengario da Carpi J. Tractatus de Fractura Calvae Sive Cranei. Bologna, Italy: Hieronymus de Benedictus; 1518

Paralelamente, diversos avanços no âmbito da anestesia, antissepsia e hemostasia permitiram também um melhor desfecho nas neurocirurgias. Ambrose Paré (1510-1590) demonstrou que ligaduras em vasos conferem melhor hemostasia que o clássico até então uso de óleo quente (16). Willian Bovie (1881-1958) e Harvey Cushing (1869-1939) introduziram o eletrocautério, aprimorando o domínio da hemostasia. Cushing, em 1926, foi o primeiro a realizar uma ressecção de um mieloma da calota craniana (uma patologia que caracteristicamente confere um importante sangramento durante a sua ressecção, caso não se faça uso correto da hemostasia) (17). Por milênios, o alívio das dores e a anestesia foram concedidos graças ao vinho e ao ópio. Em 1798, Humphry Davy (1778-1829) descobriu o óxido nitroso, dando passagem à uma série de descobertas de agentes anestésicos, muitos dos quais provados pelos seus expositores (18). As técnicas de assepsia e antissepsia só passaram a ter devido valor no século XIX, quando a conexão entre microorganismos e cirurgia passou a ficar mais clara. Em meados do referido século, metade dos pacientes submetidos à algum procedimento, morriam por infecção. Em 1840, Ignaz Semmelweis (1818-1865), enquanto trabalhava na maternidade em Viena, notou que ao mesmo tempo em que os internos faziam dissecção de cadáveres, também auxiliavam nos trabalhos de parto. Ele demandou que os internos lavassem as mãos com uma solução de cloro e observou que após fazendo tal lavagem, o número de infecções pós parto reduziu drasticamente. À época, isso não foi levado em consideração, infelizmente, apenas décadas após foi reconhecida (19). Com trabalhos memoráveis de Louis Pausteur (microorganismos podem se reproduzir e se dissipar pelo ar) e Robert Kock (descoberta do Bacillus anthracis), outros pesquisadores evoluíram o conhecimento das infecções em cirurgia (20): Joseph Lister (1827-1912) começou a utilizar ácido carbólico nos instrumentais, nas feridas, nas luvas e mãos (21). Desta maneira, a assepsia, a antissepsia, a hemostasia e anestesia permitiram uma nova era para os procedimentos cirúrgicos, permitindo cirurgias mais longas, menos dolorosas, mais seguras e com menor taxa de infecção.

Progressivamente, novas técnicas cirúrgicas para acesso craniano foram desenvolvidas. No entanto, o maior detalhamento e acurácia foi alcançado com o progressivo uso da microscopia. O primeiro microscópio foi desenvolvido em torno de 1950 por Zacharias Janssen (1585-1632) e Hans Martens, alinhando duas lentes dentro de um tubo (22). No século XVII, Antonie van Leeuwenhoek aprimorou as lentes e na metade do século XIX, Ernst Abbé (1840-1905) e Carl Zeiss (1816-1888) otimizaram as lentes e Zeiss foi o primeiro à produzir microscópios em escala maior, predominantemente utilizados por oftalmologistas e otorrinolaringologistas (23). Theodore Kurze (1922-2002) foi o primeiro neurocirurgião à utilizar o microscópio, removendo um neurinoma do VII nervo craniano (23). Vários neurocirurgiões deram suporte ao uso, notadamente Hugo Krayenbühl (1902-1985), chefe do serviço de neurocirurgia de Zurich, que enviou Mahmut Gazi Yaşargil para treinamento no microscópio de Raymont Donaghy (1910-1991) em Vermont (24). Juntos, os dois últimos promoveram o primeiro simpósio de microvascular, em 1966 (25). Yaşargil, mais do que ninguém, abrilhantou o conhecimento da moderna neurocirurgia, com técnicas microcirúrgicas e aprimoramento da abordagem pterional, a mais clássica e utilizada forma de acesso ao conteúdo intracraniano (26).

Instrumento neurocirúrgico – trefina – descrita por Jacopo Berengario da Carpi. Muito similares às ainda utilizadas nos dias atuais em determinadas cirurcunstâncias. Berengario da Carpi J. Tractatus de Fractura Calvae Sive Cranei. Bologna, Italy: Hieronymus de Benedictus; 1518

Uma especialidade médica complexa, repleta de mitologia, especulação, divindades e ciência. Diversos estudiosos, no anseio da contínua melhora, propiciaram e continuam inspirando novos aprendizes na busca por melhorias, novas técnicas e abordagens.

A neurocirurgia oferece uma ampla gama de possibilidades terapêuticas, a depender do histórico do paciente, da patologia, de sua gravidade e forma de apresentação:

  • Trauma (crânio, coluna, nervos periféricos)
  • Oncologia (tumores de crânio, coluna e nervos periféricos)
  • Pediatria (patologias do desenvolvimento neurológico e próprias da infância, como malformações cranianas e da coluna, cranioestenoses, hidrocefalia, tumores…)
  • Endoscopia (tratamento de hidrocefalia obstrutiva, tumores intraventriculares…)
  • Nervos periféricos (lesões traumáticas, infecciosas e tumorais) – Coluna vertebral (doenças degenerativas, escoliose, tumores…)
  • Epilepsia (displasias corticais, esclerose hipocampal, implantes de eletrodos…)
  • Funcional (tratamento da dor, doença de Parkinson, doenças psiquiátricas…)

Referências

  1. De capitus vulneribus, in: The Genuine Works of Hippocrates. Adams F. London: Sydenham Society, 1849, pp 421–466.
  2. Manzoni T. The cerebral ventricles, the animal spirits and the dawn of brain localization of function. Arch Ital Biol 136: 103–152, 1998.
  3. Park K. The criminal and the saintly body: autopsy and dissection in Renaissance Italy. Renaiss Q 47:1–33, 1994.
  4. Berengario da Carpi J. Tractatus de Fractura Calve Sive Cranei. Bologna, Italy: Hieronymus de Benedictus, 1518.
  5. Gall FJ. On the Functions of the Brain and Each of Its Parts. Boston: Marsh, Capen & Lyon, 1835. In : Ormond DR, Hadjipanayis CG. Neurosurg focus 36 (4) : E12, 2014.
  6. Nogueira AA, Alho EJ, Teixeira MJ. Models of functional cerebral localization at the dawning of modern neurosurgery. World Neurosurgery [epub ahead of print], 2013.
  7. Flourens P. Experimental Research on the Properties and Functions of the Nervous System in Vertebrate Animals. Paris: Crevot, 1824. In : Ormond DR, Hadjipanayis CG. Neurosurg focus 36 (4) : E12, 2014.
  8. Broca P. Perte de la parole; ramollissement chronique et destruction partielle dulobe antérieur gauche du cerveau. Bull Soc Anthropol 2:235–243, 1861.
  9. Wernicke C. Der aphasische Symptomenkomplex. Breslau: M Cohn & Weigert, 1874.
  10. Bennett AH, Godlee RJ. Case of cerebral tumor. Med Chir Trans 68:243–275, 1885.
  11. Gowers WR, Horsley V. A case of tumour of the spinal cord. Removal, recovery. Med Chir Trans 71:377–430.11, 1888.
  12. Horsley V. On the technique of operations on the central nervous system. Br Med J 2:411–423, 1906.
  13. Caton R. Notes of a case of acromegaly treated by operation. Br Med J 2:1421–1423, 1893.
  14. Krause F. Schussverletzungen des Schädels, in von Leyden E, Klemperer F (eds): Die Deutsche Klinik am Eingange des Zwanzigsten Jahrhunderts in Akademischen Vorlesungen. Berlin: Urban & Schwarzenberg, 1905, pp 1002–1004.
  15. Heuer GJ. Surgical experiences with an intracranial approach to chiasmal lesions. Arch Surg 1:368–381, 1920.
  16. Paré A. Dix Livres de la Chirurgie Avec le Magasin des Instruements Necessaries à Icelle. Paris: Jean Le Royer, 1564.
  17. Massarweh NN, Cosgriff N, Slakey DP: Electrosurgery: history, principles, and current and future uses. J Am Coll Surg 202:520–530, 2006.
  18. Davy H. Researches, Chemical and Philosophical—Chiefly Concerning Nitrous Oxide or Dephlogisticated Nitrous Air, and its Respiration. London: J Johnson, 1800.
  19. Wyklicky H, Skopec M. Ignaz Philipp Semmelweis, the prophet of bacteriology. Infect Control 4:367–370, 1983.
  20. Lerner KL, Lerner BW. World of Microbiology and Immunology. Detroit: Gale, 2007. In: Ormond DR, Hadjipanayis CG. Neurosurg focus 36 (4) : E12, 2014.
  21. Lister J. On a new method of treating compound fracture, abscess, etc., with observation on the conditions of suppuration. Lancet 89:326–329, 1867.
  22. Kalderon AE. The evolution of microscope design from its invention to the present days. Am J Surg Pathol 7:95–102, 1983.
  23. Kriss TC, Kriss VM. History of the operating microscope: from magnifying glass to microneurosurgery. Neurosurgery 42:899–908, 1998.
  24. Donaghy RM. The history of microsurgery in neurosurgery. Clin Neurosurg 26:619–625, 1979.
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  26. Donaghy RM. Neurosurgeon of the year: Mahmut Gazi Yasargil. Surg Neurol 13:1–3, 1980.
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  28. Dandy WE. Cerebral ventriculoscopy. Bull Johns Hopkins Hosp 33:189–190, 1922.
  29. Mixter WJ. Ventriculoscopy and puncture of the floor of the third ventricle. Boston Med Surg J 188:277–278, 1923.
  30. Decq P, Schroeder HWS, Fritsch M, Cappabianca P. A history of ventricular neuroendoscopy. World Neurosurg 79 (2 Suppl):S14.e1–S14.e6, 2013.

Curiosidade

Os povos Incas, em meados do século XV, com seus indícios de trepanação craniana.

Fonte: Documentário da Arte 1: “Enfants du soleil – Les Incas”

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